segunda-feira, 4 de maio de 2015

O Rei Pescador

Nossa história começa com o Castelo do Graal e seus terríveis problemas, pois o Rei Pescador, monarca do castelo, foi ferido. Seus ferimentos são tão graves que o impedem de viver, mas, por outro lado, não o levam à morte. Ele geme, ele grita, ele padece o tempo todo. A propriedade é uma desolação só, pois as terras espelham as condições de seu rei, tanto na dimensão mitológica quanto na física. Assim, pois, o gado não mais se reproduz, as plantações não vingam, os cavaleiros são mortos, as crianças ficam na orfandade, as donzelas choram, há lamentos e gemidos por toda parte - tudo porque o Rei Pescador está ferido.

A ideia de que o bem-estar de um reino depende da virilidade ou do poder de seu governante é bastante comum, especialmente entre os povos primitivos. Nas áreas menos civilizadas do mundo ainda existem sociedades onde o rei é executado quando não mais pode gerar descendência. Simplesmente o matam em meio a cerimônias, algumas vezes vagarosamente, outras, de formas horríveis. A crença é a de que o reino não vai prosperar sob um rei fraco ou enfermiço.

Assim, o Castelo do Graal está com sérios problemas porque o Rei Pescador está ferido. O mito nos conta que um belo dia, anos atrás, ainda durante a adolescência, ele estava percorrendo os bosques, praticando para ser um cavaleiro andante, quando deparou com um acampamento abandonado. Curiosamente, porém, havia um salmão (O "peixe da sabedoria" - Salmon of Wísdom - da tradição céltica, que queima as mãos, mas que uma vez na boca) sendo assado num espeto.

Faminto, serviu-se de um pedaço do peixe, sem perceber que estava muito quente. Seus dedos se queimaram de uma forma horrível. Deixou o peixe cair e levou os dedos à boca para aliviar a dor. Ao fazê-lo, pôde sentir um pouco do gosto do salmão, um gosto que jamais poderá esquecer. Essa é a ferida do Rei Pescador, assim chamado por ter sido ferido por um peixe, e que empresta seu nome ao que rege boa parte da psicologia moderna. O homem que sofre, hoje, em nossos dias, é o herdeiro direto desse evento psicológico, que culturalmente teve lugar há coisa de oitocentos anos.

Outra versão da mesma história diz que o jovem Rei Pescador, subjugado pelo amour, saiu em busca de alguma experiência para satisfazer sua paixão. Outro cavaleiro, um muçulmano, após haver tido uma visão da Cruz Verdadeira, saiu para encontrar uma manifestação de sua busca. Os dois se encontraram face a face e, como bons cavaleiros, baixaram o elmo e prepararam a lança para se baterem. O choque foi terrível, o cavaleiro muçulmano foi morto e o Rei Pescador foi ferido na coxa, o que arruinou seu reino por anos e anos.

Que espetáculo! O cavaleiro que teve a visão e o cavaleiro da sensualidade batem-se num combate mortal. Instinto e natureza, de repente, sendo atingidos pela visão de uma "colisão" espiritual. Assim é o cadinho dentro do qual é forjado ou o mais alto nível de evolução ou um conflito fatal, capaz de promover a destruição psicológica.

Até tremo ao ver as implicações de tal embate, pois ele nos deixa o legado da morte de nossa natureza sensual e um ferimento "terrível em nossa visão cristã. Dificilmente o homem de hoje se livra dessa colisão em algum momento de sua vida, o que poderá levá-lo a terminar nesse estado descrito em nossa história: sua paixão é morta e sua visão, muito ferida.

A história de São Jorge e o dragão, que foi adaptada de um mito persa do tempo das Cruzadas, diz mais ou menos a mesma coisa. Em sua luta contra o dragão, ele e seu cavalo são mortalmente feridos e teriam morrido não fosse a coincidência de um pássaro bicar uma laranja (ou uma lima) da árvore sob a qual jazia São Jorge, e uma gota do suco vital cair em sua boca.

Levantou-se e, sem perda de tempo, espremeu um pouco do elixir da vida na boca de seu cavalo e o reviveu. Ninguém pensou em reviver o dragão.

Há muito o que aprender com o símbolo do Rei Pescador ferido. O salmão, ou mais genericamente o peixe, é um dos símbolos de Cristo. Como na história do Rei Pescador que descobre o salmão sendo assado, um garoto, nos primórdios de sua adolescência, toca algo da sua natureza crística, no seu íntimo - que é seu processo de individuação -; só que o faz  prematuramente, sem nenhum preparo. Ao ser ferido por ele, deixa-o cair por estar quente demais. Mas, ao levar o dedo queimado à boca, prova seu sabor, e esse gosto jamais será esquecido. Seu primeiro contato com o que mais tarde virá a ser sua redenção, causa-lhe uma  ferida. É o que o torna um Rei Pescador ferido. O primeiro lampejo de consciência no jovem aparece sob a forma de uma ferida ou um sofrimento.

Muitos homens ocidentais são Reis Pescadores, e todo garoto ingenuamente tropeça em algo que é muito grande para si. Ele dá um passo na direção de seu desenvolvimento masculino, mas, por estar quente demais, "deixa-o cair". É natural que apareça nele uma certa amargura: como o Rei Pescador, ele ainda não consegue viver com essa nova consciência, que ele tocou mas ao mesmo tempo não é capaz de "deixá-la cair" totalmente.

Todo adolescente recebe sua ferida-Rei-Pescador. Não fosse assim, jamais conseguiria a consciência. Se você quiser compreender um jovem que já passou pela puberdade é preciso que isso fique bem claro. Virtualmente, todo menino tem as feridas do Rei Pescador. É o que a Igreja chama de felix culpa, ou seja, a queda feliz que conduz o indivíduo a seu processo de redenção. É a queda do Jardim do Éden, ou seja, a evolução da consciência ingênua à total consciência do self.

É doloroso ver um rapazinho dar-se conta de que o mundo não é feito só de alegria e felicidade, como pensava, e observar a desintegração de seu frescor infantil, de sua fé, de seu otimismo. Triste, porém necessário. Se não formos expulsos do Jardim do Éden não poderá haver a Jerusalém Celestial, e na liturgia católica do Sábado de Aleluia há uma bela passagem a esse respeito: "Oh! queda feliz, pois que deu a oportunidade para tão sublime redenção!"

A ferida do Rei Pescador pode coincidir com um ato de injustiça, ou seja, alguém ser acusado de algo que não fez. Lembro-me de uma passagem da autobiografia de Jung em que ele se refere a um professor que leu todos os trabalhos que seus colegas haviam feito, pela ordem das melhores notas, à exceção do seu. E o professor disse: "Há aqui um trabalho que suplanta em muito todos os outros, mas que é obviamente um plágio. Se eu puder encontrar o original, por certo que o farei expulsar da escola". Jung trabalhara muito e a criação era sua. Nunca mais confiou naquele homem nem no sistema de ensino depois desse incidente. Para ele, essa foi sua ferida-Rei-Pescador.

ESTÁGIOS DE EVOLUÇÃO

De acordo com a tradição, potencialmente existem três estágios no desenvolvimento psicológico do homem. O padrão arquetípico é aquele em que um ser passa da perfeição inconsciente da infância para a imperfeição consciente da meia-idade para, depois, atingir a perfeição consciente da velhice. Assim, o ser caminha partindo de uma plenitude ingênua, onde o mundo interior e o exterior estão unidos, para um estágio em que se dá a separação e a diferenciação entre esses dois mundos, denotando, portanto, a dualidade da vida, para, finalmente, atingir o satori, a iluminação - quando acontece uma reconciliação consciente do interior com o exterior, em harmoniosa totalidade.

Estamos testemunhando o desenvolvimento do Rei Pescador do primeiro estágio para o segundo. Não se pode ainda sequer falar do último estágio, antes de ele haver completado o segundo. Não é possível discorrer sobre a unicidade do Universo antes de dar-se conta de sua dualidade e separação. Poderemos fazer toda sorte de acrobacias mentais para falar da unidade de todas as coisas; mas não há chance de atuar realmente na unidade se não conseguirmos diferenciar o mundo interior do exterior. Temos de deixar o Jardim do Éden antes de empreendermos a jornada para a Jerusalém Celestial. O irônico é que ambos são o mesmo lugar; mas essa jornada precisa ser feita.

O primeiro passo do homem para sair do Éden e entrar no mundo da dualidade é sua ferida-Rei-Pescador: a experiência da alienação e do sofrimento que vai impulsioná-lo para o início da conscientização. 

Com relação ao garoto, essa ferida muitas vezes perturba seu relacionamento com o meio que o cerca. Quando ele dá seu primeiro passo na direção da individuação, isto é, quando toca seu salmão pela primeira vez, começa a ser alguém por si próprio. Mas o processo só se iniciou, está longe de ser completado, o que significa que ele foi expelido do coletivo, deixando de ser um carneiro no rebanho. Seu relacionamento com outras pessoas e com a vida está destruído, mas ele não está distanciado o suficiente, o que significa que ainda não se tornou um indivíduo que possa relacionar-se bem com a vida. Diríamos que ele está numa espécie de limbo, porque afinal de contas não está nem aqui nem lá. Assim, na medida em que é um Rei Pescador, ele não consegue relacionar-se bem.

Alienação é um termo que exprime bem essa situação: somos pessoas alienadas, pessoas existencialmente solitárias, carregamos as feridas do Rei Pescador.

O mito também nos diz que o rei foi ferido na coxa, o que nos faz lembrar a passagem bíblica sobre Jacó lutando com o Anjo. Jacó é ferido na coxa. O toque de algo transpessoal - um anjo ou Cristo na representação do peixe - deixa uma terrível ferida, que grita incessantemente por redenção. O ferimento na coxa significa que o homem foi atingido na sua capacidade de gerar, na sua habilidade para relacionar-se.

Existe outra versão da história, em que o Rei Pescador é ferido por uma flecha que lhe trespassa os testículos. A flecha não pode ser retirada, em nenhuma direção - nem para a frente, para que passe por inteiro, nem para trás, pois isso o dilaceraria. Outra vez ele é descrito como muito enfermo para viver, mas ao mesmo tempo não tão ferido que possa morrer. 

Grande parte da literatura moderna versa sobre a perda e a alienação dos heróis. Mas essa alienação também é visível no semblante dos que encontramos pelas ruas - a ferida do Rei Pescador é o carimbo do homem moderno.

Duvido muito que haja uma só mulher em todo o mundo que não tenha assistido silenciosamente à agonia de seu companheiro, no seu aspecto-Rei-Pescador. Pode ser que ela venha a perceber no seu homem - muito antes de ele próprio dar-se conta - o sofrimento, a sensação persecutória de injustiça e falta de plenitude, do vazio. Sofrendo dessa forma, o homem é muitas vezes levado a fazer coisas estúpidas na tentativa de curar a ferida e suavizar o desespero que sente. É como se buscasse uma solução inconsciente, fora de si próprio, queixando-se de seu trabalho, do casamento ou do lugar que tem no mundo. Pode até, nessa fase, tentar encontrar uma outra mulher.

O Rei Pescador é transportado numa liteira, por onde quer que vá, e está sempre gemendo e gritando em seu desespero. Para ele não há alívio a não ser quando está pescando. Isso significa que aquela ferida, que representa a consciência, só é suportável quando o ferido está executando seu trabalho interior, dando prosseguimento à tarefa da conscientização, da individuação, que ele, despreparado, iniciou com o ferimento em algum momento de sua juventude. Essa estreita ligação com a pesca logo tomará um lugar importante em nossa história.

O Rei Pescador preside à sua corte no Castelo do Graal, onde o Santo Graal - cálice da Última Ceia - é guardado. A mitologia nos ensina que o rei que governa nossa corte interior  confere a ela e a todos os aspectos de nossa vida o tom e o caráter. Se o rei está bem, estamos bem; se as coisas estão bem dentro, também tudo estará bem fora. Com o Rei Pescador ferido presidindo à corte interior do homem ocidental de hoje, podemos esperar muito sofrimento e alienação. E assim é: o reino não floresce; as colheitas são mínimas; as donzelas vivem desconsoladas; as crianças, órfãs. Tal eloquente linguagem nos mostra um arquétipo básico ferido que se está manifestando através de problemas em nossa vida exterior.

NOSSO BOBO INTERIOR

Todas as noites é feita uma cerimônia muito solene no Castelo do Graal. O Rei Pescador, como
sempre carregando seu sofrimento, de sua liteira assiste: a uma procissão de profunda beleza e significado. Uma linda donzela traz a lança que perfurou o flanco de Cristo, na Crucificação, outra leva a pátena usada para o pão da Última Ceia e outra, ainda, traz o próprio Graal brilhando por efeito de uma luz que sai do seu interior.

A cada um é servido o vinho do Graal, e todos têm seus mais recônditos desejos instantaneamente satisfeitos, mesmo antes de serem expressados. Todos, menos o ferido Rei Pescador, que não pode beber do Graal. Por certo que essa é a privação das privações: impedido de ter acesso à essência da beleza e do sagrado, justamente quando estão bem à tua frente, é o mais cruel dos sofrimentos. Todos são servidos, exceto o rei, e todos também têm a Consciência de que seu próprio ponto central é falho, porque seu rei não pode partilhar o Graal.

Lembro-me de uma vez em que a beleza me foi negada da mesma maneira. Durante uma viagem que fiz para passar o Natal com meus pais, há muitos anos, eu estava particularmente solitário e de mal com o mundo. Passei por São Francisco e parei na minha querida Grace Cathedral. Estava programada para aquela tarde uma apresentação do Messias, de Haendel, por isso resolvi ficar para ouvir essa obra inspiradíssima. Nenhum outro lugar é tão próprio para ouvi-Io, pois a construção é muito grande, seu órgão é excelente e o coro, magistral. Pouco depois do início senti-me tão mal, tão infeliz, que fui obrigado a sair. Foi aí que percebi que a busca da beleza ou da felicidade era vã, pois eu não conseguia nem tomar parte na beleza que estava ao alcance de minhas mãos! Nenhuma dor é pior ou mais amedrontadora do que nos darmos conta de que nossa capacidade para o amor, beleza ou felicidade é limitada. Nenhum esforço exterior é possível se nossa capacidade interior está ferida. Essa é a ferida do Rei Pescador.

Quantas vezes as mulheres já não disseram para seu marido: "Veja todas as coisas boas que você tem; nossos rendimentos nunca foram maiores; temos dois carros; sempre tiramos dois ou três dias nos fins de semana. Por que é que você não pode ser feliz, afinal de contas? O Graal está ao seu alcance. Por que é que você não pode ser feliz?"

O homem é incapaz de dar como resposta: "É porque sou um Rei Pescador, estou ferido, e, apesar de ter tudo, não consigo chegar à felicidade".

Mais um sofrimento soma-se à sua dor: a tão almejada felicidade está ao alcance de suas mãos mas para ele é intocável. O fato de ter todas as coisas que o poderiam fazer feliz não adianta, porque elas não cicatrizam as feridas do Rei Pescador, e ele sofre justamente pela sua incapacidade de tocar as coisas boas, a felicidade que tem ao seu alcance.

O mito nos ensina a cura para o dilema que retrata; e o do Graal faz uma afirmativa profunda sobre a natureza dos males de nossos dias e prescreve sua cura, em termos bem estranhos.

Continuemos, pois, com nossa história. O bobo da corte (e toda corte que se preza tem seu bobo) profetizara, havia muito tempo, que o Rei Pescador se curaria quando um perfeito tolo, totalmente ingênuo, chegasse à corte e fizesse uma pergunta bem específica. Qualquer corte medieval que se prezasse entenderia isso, e nem por um instante as pessoas ficariam surpresas de que um jovem totalmente ingênuo pudesse ser a solução para todos os seus problemas. Para nós, porém, é um choque saber que um tolo pode ter a resposta para a nossa mais dolorosa ferida. Muitas são as lendas que põem nossa cura nas mãos de um tolo ou de alguém ainda mais improvável que tenha esse poder. O povo, então, passou a esperar diariamente pelo bobo ingênuo que um dia chegaria para curar seu rei.

O mito está dizendo que é a parte inocente do homem que o curará de sua ferida-Rei-Pescador. Sugere, assim, que se alguém pretende curar-se deverá reencontrar algo no seu interior que tenha a mesma idade e a mesma mentalidade de quando foi ferido. Mas também nos diz por que o rei não pode curar-se a si próprio e por que a pescaria alivia sua dor, apesar de não curá-lo de vez.

Para realmente sarar ele precisará permitir a entrada em seu consciente de algo completamente diferente dele mesmo, para que esse algo o venha a mudar. Se ele continuar com a velha mentalidade do Rei Pescador não vai sarar. Por essa razão é que a parte jovem-tolo que o constitui deve entrar em sua vida se ele realmente quiser sarar.

Em meu consultório, algumas vezes, um paciente vocifera quando lhe prescrevo algo que acha estranho ou difícil: "Quem é que você pensa que eu sou? Um tolo?" E eu respondo: "Bom, isso bem que te ajudaria". É uma "medicina" muito humilhante para ser aceita.

É necessário que o homem aceite olhar seu lado inocente, tolo, adolescente, para conseguir curar-se. Só o nosso tolo interior pode tocar a ferida do Rei Pescador.

Extraído de "HE - A chave do Entendimento da Psicologia Masculina" - Robert A. Johnson

Um comentário:

  1. que legal, mas que complexo a reflexão desse texto. Aplicando na minha vida, vi que meu cuidado com os meninos, meu sonho de ter um filho homem é a pescaria pra aliviar minha ferida. Mas como interiorizar o tolo em busca de respostas? o que isso quer dizer? dormirei pensando nisso hehe

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