Nossa história começa com o Castelo do Graal e seus terríveis problemas, pois o Rei Pescador, monarca do castelo, foi ferido. Seus ferimentos são tão graves que o impedem de viver, mas, por outro lado, não o levam à morte. Ele geme, ele grita, ele padece o tempo todo. A propriedade é uma desolação só, pois as terras espelham as condições de seu rei, tanto na dimensão mitológica quanto na física. Assim, pois, o gado não mais se reproduz, as plantações não vingam, os cavaleiros são mortos, as crianças ficam na orfandade, as donzelas choram, há lamentos e gemidos por toda parte - tudo porque o Rei Pescador está ferido.
A ideia de que o bem-estar de um reino depende da virilidade ou do poder de seu governante é bastante comum, especialmente entre os povos primitivos. Nas áreas menos civilizadas do mundo ainda existem sociedades onde o rei é executado quando não mais pode gerar descendência. Simplesmente o matam em meio a cerimônias, algumas vezes vagarosamente, outras, de formas horríveis. A crença é a de que o reino não vai prosperar sob um rei fraco ou enfermiço.
Assim, o Castelo do Graal está com sérios problemas porque o Rei Pescador está ferido. O mito nos conta que um belo dia, anos atrás, ainda durante a adolescência, ele estava percorrendo os bosques, praticando para ser um cavaleiro andante, quando deparou com um acampamento abandonado. Curiosamente, porém, havia um salmão (O "peixe da sabedoria" - Salmon of Wísdom - da tradição céltica, que queima as mãos, mas que uma vez na boca) sendo assado num espeto.
Faminto, serviu-se de um pedaço do peixe, sem perceber que estava muito quente. Seus dedos se queimaram de uma forma horrível. Deixou o peixe cair e levou os dedos à boca para aliviar a dor. Ao fazê-lo, pôde sentir um pouco do gosto do salmão, um gosto que jamais poderá esquecer. Essa é a ferida do Rei Pescador, assim chamado por ter sido ferido por um peixe, e que empresta seu nome ao que rege boa parte da psicologia moderna. O homem que sofre, hoje, em nossos dias, é o herdeiro direto desse evento psicológico, que culturalmente teve lugar há coisa de oitocentos anos.
Outra versão da mesma história diz que o jovem Rei Pescador, subjugado pelo amour, saiu em busca de alguma experiência para satisfazer sua paixão. Outro cavaleiro, um muçulmano, após haver tido uma visão da Cruz Verdadeira, saiu para encontrar uma manifestação de sua busca. Os dois se encontraram face a face e, como bons cavaleiros, baixaram o elmo e prepararam a lança para se baterem. O choque foi terrível, o cavaleiro muçulmano foi morto e o Rei Pescador foi ferido na coxa, o que arruinou seu reino por anos e anos.
Que espetáculo! O cavaleiro que teve a visão e o cavaleiro da sensualidade batem-se num combate mortal. Instinto e natureza, de repente, sendo atingidos pela visão de uma "colisão" espiritual. Assim é o cadinho dentro do qual é forjado ou o mais alto nível de evolução ou um conflito fatal, capaz de promover a destruição psicológica.
Até tremo ao ver as implicações de tal embate, pois ele nos deixa o legado da morte de nossa natureza sensual e um ferimento "terrível em nossa visão cristã. Dificilmente o homem de hoje se livra dessa colisão em algum momento de sua vida, o que poderá levá-lo a terminar nesse estado descrito em nossa história: sua paixão é morta e sua visão, muito ferida.
A história de São Jorge e o dragão, que foi adaptada de um mito persa do tempo das Cruzadas, diz mais ou menos a mesma coisa. Em sua luta contra o dragão, ele e seu cavalo são mortalmente feridos e teriam morrido não fosse a coincidência de um pássaro bicar uma laranja (ou uma lima) da árvore sob a qual jazia São Jorge, e uma gota do suco vital cair em sua boca.
Levantou-se e, sem perda de tempo, espremeu um pouco do elixir da vida na boca de seu cavalo e o reviveu. Ninguém pensou em reviver o dragão.
Há muito o que aprender com o símbolo do Rei Pescador ferido. O salmão, ou mais genericamente o peixe, é um dos símbolos de Cristo. Como na história do Rei Pescador que descobre o salmão sendo assado, um garoto, nos primórdios de sua adolescência, toca algo da sua natureza crística, no seu íntimo - que é seu processo de individuação -; só que o faz prematuramente, sem nenhum preparo. Ao ser ferido por ele, deixa-o cair por estar quente demais. Mas, ao levar o dedo queimado à boca, prova seu sabor, e esse gosto jamais será esquecido. Seu primeiro contato com o que mais tarde virá a ser sua redenção, causa-lhe uma ferida. É o que o torna um Rei Pescador ferido. O primeiro lampejo de consciência no jovem aparece sob a forma de uma ferida ou um sofrimento.
Muitos homens ocidentais são Reis Pescadores, e todo garoto ingenuamente tropeça em algo que é muito grande para si. Ele dá um passo na direção de seu desenvolvimento masculino, mas, por estar quente demais, "deixa-o cair". É natural que apareça nele uma certa amargura: como o Rei Pescador, ele ainda não consegue viver com essa nova consciência, que ele tocou mas ao mesmo tempo não é capaz de "deixá-la cair" totalmente.
Todo adolescente recebe sua ferida-Rei-Pescador. Não fosse assim, jamais conseguiria a consciência. Se você quiser compreender um jovem que já passou pela puberdade é preciso que isso fique bem claro. Virtualmente, todo menino tem as feridas do Rei Pescador. É o que a Igreja chama de felix culpa, ou seja, a queda feliz que conduz o indivíduo a seu processo de redenção. É a queda do Jardim do Éden, ou seja, a evolução da consciência ingênua à total consciência do self.